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MINHA CONTA

Era feliz, e não sabia. por Dias Campos

31 de julho de 2022

Cleber morava sozinho em uma quitinete no centro da cidade. E se quisessem definir em que se resumia a sua vida nesses últimos dez meses, acertariam se escolhessem a palavra rotina.

O que mais o entediava era ter que lavar a própria louça. – menos mal que tinha o que lavar.

É fato que essa mesmice vinha sendo quebrada há alguns dias pela visita das conhecidas e teimosas formiguinhas de cozinha.

Em um vaivém disciplinado, esses insetos atravessavam toda a extensão da pia, alcançavam uma lixeira de plástico, escalavam-na confiantes, entregavam-se à comilança, e retornavam para o orifício de onde saíram, felizes e bem nutridas.

No entanto, essas incursões, porque regulares, também já começavam a cansar. E o ramerrão voltou.

Certa noite, quando Cleber lavava, com pressa, o último copo de requeijão – a novela estava prestes a começar –, um pouco de espuma desgarrou-se da esponja e foi cair sobre a fila de formigas, matando algumas e interrompendo o fluxo. É claro que houve um baita tumulto entre as comensais, incluindo as que ainda não sabiam do acontecido, visto que prosseguiam com a marcha, encostavam suas antenas nas bolhas de detergente, e retornavam de ré, esfregando-as instintivamente no tampo, numa tentativa desesperada de se limparem. Por força disso, aglomerações começaram a se formar em ambos os lados da montanha branca.

Cleber sorriu…

Não que essa diversão fosse entretê-lo por muito tempo. Sabia que dali a alguns dias voltaria ao feijão-com-arroz. Mas se o acaso resolvera intervir, que aproveitasse ao máximo!

Daí que bastava começar a lavar os pratos para que o sarcástico prazer ressurgisse. E ele pingava sobre as vítimas as borbulhas letais.

Às vezes, Cleber não se contentava com um único ataque. E gotejava a morte em pontos diferentes das carreiras, distribuindo o pânico entre as sobreviventes e deliciando-se com o corre-corre.

Outras vezes, ele sequer esperava muito tempo para pôr fim àquela correria. Enchia de água o copo que acabara de ensaboar e jogava o conteúdo na parede, de modo que o líquido precipitava-se sobre as colunas feito enxurrada, levando para o ralo um grande número de cadáveres.

Esse divertimento perduraria por um tempo razoável. E Cleber até se espantaria por não se haver enjoado mais cedo.

Mas quando o deleite acabou, um hiato ficava. Era preciso, pois, preenchê-lo o mais rápido possível, haja vista que, pelo que pressentia, os nós do quotidiano retornariam ainda mais apertados!

Foi quando Cleber ouviu a gata da vizinha…

Por não ter sido castrada, o cio desse estupor volta e meia o incomodava; sobretudo quando ela teimava em miar madrugada adentro. E como Cleber tinha sono leve, a libido desafinada impunha aos seus pobres ouvidos uma tortura sem fim.

Ora, se acabar com simples formigas tinha sido tão eficaz no combate à sua monotonia, imagine-se o bem que experimentaria se eliminasse aquele ronronar ambulante?

Neste instante, a campainha soou no andar de cima. Isso, por si só, pouco ou nada o incomodaria, não fosse o fato de que o morador daquela unidade possuía dois poodles, que, como é notório, desandam a latir, aguda e irrefreavelmente, toda vez que alguém aperta o malfadado botão.

O sorriso de Cleber aumentava… Primeiro, ele acabaria com a caçadora de ratos. E os efeitos desse sumiço proporcionariam um bom tempo sem tédio. Após, quando o aborrecimento voltasse, ele desapareceria com os sacos de pulgas. E o consequente alvoroço garantiria um período maior de distração.

E se depois desse extermínio ele voltasse a ficar enfastiado, quem sabe não seria o caso de estender aquela prática para toda a vizinhança, para todo o bairro, para toda a cidade? Afinal, quanto mais comoção causasse, menos entediante seria a sua vida.

Cleber começou a maquinar o gaticídio. Assim como ele, sua vizinha saía para trabalhar um pouco antes da aurora despontar e só retornava tarde da noite. Ao que supunha, ela deixava água e comida suficientes para que o felino aguentasse o dia todo. Mas e se uma “alma caridosa” oferecesse ao bichano algo muito mais apetitoso do que aquela velha ração a que estava acostumado? De certo seria a sua última refeição! O que precisaria fazer, portanto, seria comprar algum tipo de guloseima, temperá-la com um pouco de veneno, torcer para que o apetite da condenada fosse muito maior do que o seu olfato, e introduzir o presente de grego através do vão da porta, que, por óbvio, só era tapado por uma cobrinha de pano quando a locatária estava em casa.

Mas, e se a sortuda já tivesse comido o suficiente? e se ela fosse tão acostumada àquela dieta que não admitisse nenhuma novidade? e, pior, se ela cheirasse o petisco, mas dele se afastasse porque percebeu a toxina?

Bem, concluía Cleber, mesmo que a isca não a atraísse, o burburinho seria instalado, e isso já lhe seria benéfico.

Pois que saísse, comprasse o melhor dos quitutes, e aguardasse a segunda-feira, quando, então, colocaria em prática o seu plano.

Mas bastou Cleber abrir a porta para que estacasse diante do cano de um revólver calibre 38!

Em atitude de puro reflexo, ele ainda tentou fechá-la!…

Mas o sujeito era corpulento, e não teve dificuldades em empurrá-lo para trás.

O estranho entrou, mandou que sentasse, advertiu-o de que ficasse em silêncio, e assobiou.

Em seguida, sua filha, uma jovem de dezesseis anos, entrava bastante encabulada. E não vinha só, pois em cada braço havia um bebê, gêmeos univitelinos a que dera luz há pouco mais de um mês.

Cleber reconheceu-a no ato! E relembrando o que fizeram, deduziu quem era o pai daqueles anjinhos cabeludos.

Trancada a porta, e o “gentil” senhor foi muito persuasivo em sua explanação – pouco lhe importava que casassem, contanto que morassem sob o mesmo teto, a fim de que o sedutor assumisse as suas responsabilidades, provendo o sustento da família e a educação dos filhos.

O rapaz não teve escapatória; até porque, o convincente avô foi bem claro ao afirmar que visitaria filha e netos semanalmente, e armado.

Nem se precisaria dizer que a vida de Cleber deixava de ser enfadonha, rotineira… E a ficha caiu no exato momento em que os bebês abriram o berreiro – um por causa da fome, e o outro porque a fralda ficou cheia.

 

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